Discute-se neste artigo a possibilidade que se abre ao
Brasil, de – graças a seus imensos potenciais hídrico e eólico – produzir, de
forma renovável e sustentável, toda a energia elétrica que consome atualmente e
consumirá a partir de 2050, quando, segundo o IBGE, a população estará
estabilizada em 215 milhões de habitantes.
Palavras-chave: Energia renovável, Sistema elétrico
sustentável, Segurança elétrica.
Introdução
O Brasil dispõe de potenciais hídrico e eólico que lhe
abrem a possibilidade de produzir, de forma renovável e sustentável, toda a
energia elétrica que consome no presente e consumirá a partir de 2050, quando,
segundo o IBGE, a população estará estabilizada em 215 milhões de habitantes.
A interligação dos parques eólicos com a rede
hidrelétrica, visando estruturar um sistema hidroeólico, contribuirá para
suavizar a intermitência dos ventos, pois isso permite que se firme a energia
eólica, mediante a economia da água dos reservatórios hidrelétricos, para ser
usada na geração de eletricidade durante as estações secas, nas quais
normalmente os ventos são mais fortes e fartos (Carvalho; Sauer, 2012).
A interligação dos parques eólicos entre si também
contribui para amenizar o problema da intermitência dos ventos, por meio do
chamado “efeito portfólio”, pelo qual, à semelhança de uma carteira de ações na
bolsa de valores, a produção conjunta de todos os parques varia menos do que as
produções individuais de cada um, isoladamente.
Graças ao seu imenso potencial hidrelétrico – e à
possibilidade, ainda existente, de se implantarem grandes reservatórios de
acumulação -, o Brasil tem uma extraordinária vantagem comparativa em relação
aos Estados Unidos e à maioria dos países europeus e asiáticos, que são
obrigados a apelar para as usinas termelétricas convencionais ou para as
centrais nucleares.
Há, ainda, o potencial de espécies vegetais direta ou
indiretamente aproveitáveis como fonte de energia, como a cana de açúcar, por
exemplo.
Pequenas e médias usinas termelétricas a bagaço de cana
poderiam, em conjunto, adicionar ao sistema interligado uma capacidade da ordem
de 15 GW, numa estimativa conservadora (Única, 2008).
O potencial
hidrelétrico
Ao lado de requisitos técnicos, econômicos e
ambientais, o aproveitamento do potencial hidrelétrico deve respeitar o direito
dos habitantes das regiões a serem alagadas, cabendo ao governo a
responsabilidade de acomodar as populações ribeirinhas, mediante a execução de
programas de reassentamento planejados em cooperação com as lideranças locais.
Essa é uma conditio sine qua non para a construção de
reservatórios de acumulação na Amazônia, sem os quais a curva de armazenamento
de energia será cruzada pela curva de aversão ao risco de escassez – e o
sistema elétrico brasileiro entrará em colapso.
Determinados segmentos da sociedade, no entanto, têm a
percepção de que a geração hidrelétrica é invariavelmente deletéria, por causar
a “artificialização das bacias hidrográficas” e a degradação da qualidade de
vida das populações locais.
Devido a essa percepção equivocada, o Brasil corre o
risco de ser obrigado a imitar países que, não dispondo de vantagens como as
brasileiras, têm que apelar para as ambientalmente deletérias usinas
termelétricas convencionais e/ou para as centrais nucleares, expondo suas
populações ao risco de acidentes catastróficos, como os que por muito pouco não
aconteceram há 33 anos em Three Mile Island, nos Estados Unidos, e há 29 anos em
Saint-Laurent-des-Eaux, na França – e de fato aconteceram há 26 anos em
Chernobyl, na Ucrânia, e há dois anos em Fukushima, no Japão.
Na verdade, os reservatórios hidrelétricos podem ser
aproveitados para múltiplas finalidades, tais como regularização de vazões,
transporte fluvial, irrigação de grandes áreas visando à produção agrícola,
pesca interior, turismo ecológico etc. Todos esses usos requerem a proteção das
nascentes e a preservação das matas ciliares, sendo, portanto, ambientalmente
benéficos – ao contrário do que supõem os adversários emocionais dos
reservatórios hidrelétricos.
Um notável exemplo de uso múltiplo de bacia
hidrográfica é o da usina hidrelétrica de Três Marias, originalmente projetada
apenas como reservatório de regularização, para irrigar 100 mil hectares do
Projeto Jaíba, em Minas Gerais. Esse reservatório (que cobre uma área maior do
que o dobro da Baía da Guanabara) é responsável pelo desenvolvimento da outrora
paupérrima região nordeste de Minas. A geração hidrelétrica foi apenas uma
decorrência de sua construção.
Outro exemplo é o da hidrelétrica de Sobradinho, que
permitiu o desenvolvimento do maior polo de fruticultura irrigada do Brasil
(Veiga Pereira et al., 2012).
Ainda outros exemplos são algumas hidrelétricas da
Light e da Cesp, cujos reservatórios regularizam a vazão da bacia do Rio
Paraíba do Sul e permitem a captação de água para a região metropolitana do Rio
de Janeiro e algumas cidades do trecho paulista daquela bacia.
Segundo a Empresa de Pesquisa Energética, o potencial
hidrelétrico brasileiro passível de ser técnica e economicamente aproveitado
nas atuais condições de tecnologia é de 250 GW, dos quais 83 GW já estão em
aproveitamento (EPE, 2012).
Dos 167 GW que ainda poderiam ser aproveitados, cerca
de 108 GW situam-se na Amazônia e 59 GW nas demais regiões do país.
Admitamos que, por motivos sociais e ambientais, 20% do
potencial amazônico permaneçam intocados. Admitamos também que, devido a
impactos de mudanças climáticas, caia em cerca de 15% a energia natural
afluente, assegurada pelo fluxo dos rios da região (Schäffer, 2011).
Nesse caso, restariam 73 MW a serem instalados na
Amazônia. Suponhamos, ainda, que 10% do potencial das demais regiões fiquem
intocados e desconsideremos as previsões de que as mudanças climáticas causarão
aumentos de vazão nos rios das regiões Centro-Sul e Sul. Sobraria, portanto, um
potencial da ordem de 53 GW, fora da Região Amazônica.
Assim, em adição aos 83 GW já em aproveitamento, ainda
poderiam ser construídas hidrelétricas totalizando uma capacidade da ordem de
126 GW, de modo que o parque hidrelétrico brasileiro, como um todo, poderá ter
uma capacidade total de 209 GW.
A fim de assegurar que a energia armazenada seja
suficiente para suprir o sistema durante as estações secas, o volume global dos
reservatórios brasileiros deverá duplicar, tornando indispensável a implantação
dos grandes reservatórios já inventariados e ambientalmente passiveis de serem
aproveitados, em particular na Amazônia. Nesse caso, a área alagada seria
inferior a 0,6% da área daquela região (incluindo a área normalmente já ocupada
pelos rios, nas estações chuvosas). Parece claro que tal impacto pode ser
assimilado em pouco tempo pelo ecossistema regional.
Assinale-se que alterações causadas por desmatamentos
comprometeriam a vazão dos rios, inviabilizando as próprias hidrelétricas
(Carvalho, 2012). Assim, ao atribuir concessões para a exploração dessas
usinas, o governo deve adotar a política de obrigar contratualmente (sob pena
de multas e cassação das concessões) os concessionários a manterem guardas
florestais, com a atribuição de fiscalizar e proteger as nascentes, matas
ciliares e outros ecossistemas sensíveis, situados na região de influência dos
reservatórios.
O potencial eólico
Em 2001, o Centro de Pesquisas de Energia Elétrica
(Eletrobras/Cepel) realizou um inventário do potencial eólico brasileiro,
estimando-o em 143 GW para turbinas encontradas no mercado, instaladas em
torres de 50 metros.
Estudos mais recentes mostram que, com o
desenvolvimento de turbinas mais eficientes e torres mais altas, o potencial
pode superar 280 GW.
As perspectivas de se inventariar um potencial ainda
maior são muito auspiciosas, com os ganhos de escala e aprendizado, resultantes
do desenvolvimento tecnológico e da nacionalização da cadeia produtiva eólica
(Ricosti; Sauer, 2012).
Acresce que as mudanças climáticas deverão causar um
impacto bastante positivo sobre o potencial eólico (Schäffer, 2011).
Naturalmente, a implantação de parques eólicos deve ser
planejada por forma a evitar que interfiram nas rotas de migração da fauna
alada, ou provoquem impactos acústicos acima de limites toleráveis, em regiões
habitadas.
Um sistema hidroeólico
Um sistema interligando as hidrelétricas com as eólicas
e as termelétricas a biomassa, com as capacidades e fatores de capacidade
indicados na Tabela 1, poderá gerar cerca de 1.103 GWh por ano.
As usinas térmicas a gás natural já existentes seriam
acionadas (com suprimento flexível de combustível) apenas em períodos
hidroeólicos críticos, otimizando a operação do sistema e servindo como seguro
para reduzir riscos de racionamento (Carvalho; Sauer, 2012).
Para isso, será necessário realizar grandes
investimentos na modernização dos sistemas de transmissão e distribuição,
inclusive mediante o emprego de tecnologias * Para isso, será necessário
realizar grandes investimentos na modernização dos interligado, o f.c. deve superar
a média ponderada dos sistemas isolados avançadas, como as redes inteligentes
(smart grids), para que o despacho dos parques eólicos seja continuamente
associado ao despacho das hidrelétricas, elevando consideravelmente o fator de
capacidade do sistema interligado (Carvalho, 2012).
Igualmente necessário é que o planejamento do setor
energético seja mais abrangente, siga diretrizes estratégicas bem definidas
para o longo prazo e seja normativo, diferentemente dos planos feitos nos dias
de hoje, que são influenciados pela conjuntura política, por pressões
corporativas e até por interesses mercantis de curto prazo.
E será indispensável que a Empresa de Pesquisa
Energética e o Operador Nacional do Sistema sejam formalmente vinculados, a fim
de compatibilizar os planejamentos de curto e médio prazos, com a operação do
sistema; evitando os desentendimentos que têm colocado em risco o suprimento de
energia, embora a afluência mínima dos rios brasileiros, em seu conjunto, não
tenha passado por mínimos inferiores a 15% abaixo da afluência média, nos
últimos dez anos.
Considerações finais e
conclusão
Neste artigo não foi considerado o potencial
fotovoltaico, o qual – com o desenvolvimento tecnológico nos campos dos
semicondutores e das redes inteligentes – poderá desempenhar um papel muito importante
no sistema elétrico brasileiro.
Tampouco foi considerado o potencial energético dos
mares (energia das ondas, das marés, das correntes marinhas etc.). Considerando
que o Brasil tem mais de oito mil quilômetros de costa atlântica, presume-se
que este potencial seja significativo.
No artigo também não foi tomado em conta o
aproveitamento de resíduos urbanos em minicentrais termelétricas que, em
conjunto, podem ter um potencial muito grande, dada a magnitude do problema
colocado pelo descarte desses resíduos, num pais de população urbana superior a
160 milhões de habitantes.
Quanto aos custos da energia elétrica, esses compõem-se
de uma parte fixa, correspondente à amortização do capital investido – e de uma
parte administrável, composta pelas despesas necessárias ao funcionamento da
usina geradora.
A parte fixa abrange as despesas incorridas na
implantação da usina (projetos, equipamentos, construção, montagem e testes), e
a parte administrável compreende as despesas de operação e manutenção, seguros,
salários, encargos trabalhistas etc. Modicidade tarifária implica
racionalização dessas despesas, sendo, portanto, incompatível com pressões
corporativas e interesses mercantis de curto prazo.
No caso das usinas nucleares, há também os custos do
combustível, do descomissionamento ao fim da vida útil e da administração dos
rejeitos radiativos.
Os custos efetivamente praticados devem ser
estabelecidos por meio de negociações entre o poder concedente e o investidor,
nas quais entram critérios subjetivos tais como “atratividade” para o
investidor e “razoabilidade” para os consumidores; daí o imperativo ético de
que o processo seja absolutamente transparente.
Calcula-se que, no Brasil, o custo da energia
hidrelétrica fique em cerca de R$ 80/MWh e o da nuclear em R$ 200/MWh
(Carvalho; Sauer, 2009).
Entre ambos vem a energia eólica, que foi negociada por
aproximadamente R$ 100/MWh, em recentes leilões promovidos pelo Ministério de
Minas e Energia.
À guisa de conclusão, podemos afirmar que um sistema
hidroeólico estruturado nas condições brasileiras seria inteiramente
sustentável e teria capacidade para cobrir indefinidamente a demanda brasileira
por energia elétrica.
De fato, como foi mostrado no item anterior, graças aos
seus imensos potenciais hídrico e eólico, o Brasil poderá estruturar um sistema
hidroeóloico capaz de gerar, de forma renovável e sustentável, cerca de 1.103
GWh por ano.
Assim, a partir de 2050, quando, segundo o IBGE,
população estará estabilizada em 215 milhões de habitantes, o sistema
hidroeólico teria capacidade para oferecer ao país, em caráter permanente, algo
em torno de 5.100 kWh por habitante por ano.
Isso significa que, apenas com o aproveitamento de
fontes de energia limpas e sustentáveis, o Brasil poderá, em matéria de energia
elétrica, equiparar-se a países europeus altamente desenvolvidos.
Por fim, é importante ter em mente que, a partir de um
patamar razoável, o bem-estar de uma sociedade não depende, necessariamente, do
crescimento à outrance da produção física, nem de um grande consumo de energia.
Países como a Suíça e a Alemanha, por exemplo, não
crescem desmesuradamente e, em termos per capita, consomem três vezes menos
energia do que os Estados Unidos, no entanto os suíços e alemães desfrutam de
uma qualidade de vida superior à dos norte-americanos.
Em outras palavras, o desenvolvimento deve ser buscado
através do aprimoramento da educação e da saúde pública, do aperfeiçoamento dos
processos de produção e da qualidade dos produtos, da racionalização da
infraestrutura de telecomunicações e dos sistemas de transportes e assim por
diante – e, naturalmente, do uso racional da energia para essas finalidades (Carvalho,
2011).
Se não for assim, carece de sentido o crescimento a
qualquer custo, tão ansiosamente almejado por determinadas correntes de
economistas.
Referências
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J. F. Measuring economic performance, social progress and sustainability using
an index. Renewable and Sustainable Energy Reviews, v.15, p.1073-9, 2011.
______.
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p.293-308, doi:10.1016/j.enpol.2008.12.020, 2012.
CARVALHO,
J. F.; SAUER, I. L. Does Brazil need nuclear power plants? Energy Policy, v.37,
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Um sistema interligado hidroeólico para o Brasil, Valor Econômico, 1º nov.
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EPE
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RICOSTI,
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SCHÄFFER,
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Brasil. In: IV CONFERÊNCIA REGIONAL SOBRE MUDANÇAS GLOBAIS: O Plano Brasileiro
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ÚNICA
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cogeração na atual matriz energética brasileira e os principais desafios.
VEIGA
PEREIRA, M. et al. Energia hidrelétrica e outras fontes renováveis. In: Opção
pela Energia Hidrelétrica e Outras Fontes Renováveis. Forum Nacional, INAE,
2012.
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