A formulação de políticas públicas em setores
estratégicos, sem ampla discussão com profissionais do setor, pode não resultar
em benefícios duradouros e ainda trazer consequências ruins para o próprio
governo. Muitas vezes são necessários ajustes específicos para corrigir os
desarranjos que vão surgindo. Uma espécie de saco cheio de líquido, mas com
furos. Tampam-se alguns, mas a água continua saindo por outros.
A geração mais velha já viu várias dessas ações,
principalmente quando dos choques econômicos contra a inflação em governos
passados. Os resultados, na maioria dos casos, não foram os esperados. No setor
energético, no passado, encontramos também exemplos de controles de preços que
buscando resolver problemas pontuais não surtiram resultados duradouros.
As experiências mal sucedidas do passado para
solucionar questões específicas, sem o devido aprofundamento, podem nos ensinar
a como não repeti-las. Temos, atualmente, assistido a algumas decisões de
política energética que se valem da mesma forma de ação. No setor elétrico, por
exemplo, a instauração de novas regras (Lei Federal nº 12.783, de
11/01/2013[1]), com vistas à redução da tarifa, pode descarrilhar o setor.
Indiscutivelmente o objetivo é importante. Mas a falta de discussões com os
técnicos do dia a dia nas concessionárias preocupou vários especialistas pelas
consequências que podem advir.
Grandes empresas de geração e transmissão terão boa
parte dos seus ativos remunerada apenas pelos serviços de operação e manutenção
(O&M), sob a presunção de que já foram totalmente amortizados. Os custos de
O&M das instalações elétricas incluídas na nova regulação serão definidos a
partir de custos médios calculados pela Agencia reguladora – ANEEL.
Os formuladores das novas regras entendem que essa
medida trará uma redução do custo operacional das empresas, pois aquela empresa
que tem custos baixos é mais eficiente e será beneficiada. Na teoria há
coerência. Mas será que em um setor de tanta complexidade técnica e
especificidade esse entendimento é verdadeiro?
Os técnicos sabem bem que não há duas instalações de
geração e transmissão iguais dentro das inúmeras que compõem o complexo Sistema
Interligado Nacional (SIN). Por exemplo, duas usinas hidrelétricas com a mesma
capacidade instalada podem ter quantidade de geradores e potência de cada
máquina diferentes, alturas de queda d’água e idades de operação também
diferentes. Seus custos de manutenção vão refletir essas diferenças e
dificilmente serão os mesmos.
Em subestações e linhas de transmissão há também muitas
diferenças. Linhas de transmissão podem percorrer distâncias, por exemplo,
superiores a 300 km, atravessando diferentes tipos de terreno ou ter algumas
dezenas de quilômetros em terreno praticamente plano. Em média, há mais de duas
torres por quilômetro, que são escaladas pelos técnicos para realização da
manutenção das ferragens e isoladores que sustentam os cabos. Para cada torre
há estrada de acesso para o pessoal de manutenção. Esse percurso até as torres
exige, muitas vezes, o uso de veículos abarrotados de ferramentas de trabalho.
Para que esses veículos cheguem aos seus destinos são necessárias, muitas
vezes, pequenas obras nos acessos, na maioria das vezes, picadas. Em terrenos
planos as torres são mais baixas, favorecendo a subida dos técnicos e,
geralmente, têm acessos mais fáceis para a realização dos trabalhos. É óbvio
que nos terrenos acidentados os serviços são mais caros.
Quem olhar o mapa de relevo do Brasil verá que boa
parte das usinas hidrelétricas do sudeste está em regiões montanhosas. Muitas
das linhas do sistema saem dessas usinas, cortando as serras da Mantiqueira e
do Mar. Por isso, há torres mais altas e pesadas, distâncias maiores entre as
torres, acesso às mesmas por picadas inclinadas. Nessas situações há grandes
dificuldades em atingi-las com veículos.
Em adição, operações que a princípio são simples, como
poda de árvores visando evitar curto-circuito na linha, trazem dificuldades, se
as instalações estiverem em encostas de montanhas. Acrescenta-se ainda que, na
maioria das vezes, é necessário providenciar licença ambiental para tais
operações, pois muitas linhas de transmissão foram construídas antes da
legislação ambiental vigente.
Tudo isso se reflete no tempo de reparo do problema e
nos custos de manutenção.
Importante assinalar que as linhas de transmissão são
interligadas através de subestações, compostas, obrigatoriamente, de
equipamentos, como disjuntores, seccionadores, pára-raios e dispositivos para
medição, proteção e controle. Grande parte delas tem também transformadores de
potência, para aumentar ou reduzir a tensão, e capacitores e reatores, para
controle de tensão. Todos têm colunas de isoladores de cerâmica e são
interligados por barramentos sustentados por isoladores. Tudo isso é exposto às
condições ambientais locais, que podem variar muito de um lugar para outro.
Além das circunstâncias climáticas ao longo do ano, pode haver exposição à
maresia, fuligem de queimadas próximas, poeira de estradas de terra ou de
aragem de terra cultivável, poluição industrial ou de tráfego intenso,
concentração de pássaros, etc. Tudo isso influi na frequência com que são
feitas as inspeções nas instalações e nos serviços de manutenção. São muitos os
fatores que influem nos custos da manutenção de uma subestação.
Além das usinas, linhas e subestações, há o sistema de
telecomunicações, por microondas e/ou fibras óticas, essencial para a atuação
da proteção das linhas e equipamentos, supervisão e controle. É o “sistema
nervoso” da grande rede de transmissão e apresenta problemas similares aos das
linhas. As estações de microondas ficam, muitas vezes, em lugares isolados e,
sendo desassistidas, sujeitas a vandalismo. Caixas de conexões das fibras
óticas ficam em torres das linhas de transmissão e podem ser de difícil acesso,
com reflexos no tempo para manutenção e no custo.
Outro aspecto que influi nos custos da manutenção é
que, por questão de segurança operacional do Sistema Interligado Nacional –
SIN, os trabalhos de manutenção em muitas das instalações só são permitidos
para altas horas da noite ou em final de semana, obrigando os agentes a
alocarem custos extras de pessoal. E quem decide quando deve ser feita a
manutenção é outro agente, o ONS – Operador Nacional do Sistema.
Em suma, essa extensa descrição das instalações do SIN
nos mostra que o diabo mora nos detalhes. Uma regulação que considera custos
médios para fixar a remuneração dos agentes de geração e transmissão traz uma
simplificação arriscada para a qualidade dos serviços que as Concessionárias
oferecem. Quando há falhas que provocam apagões ou “apaguinhos”, sempre se
especula se a manutenção está sendo feita corretamente.
Se não houver “caixa” para cobrir os custos de O&M,
pode-se colocar em risco a segurança do suprimento de energia. Vale destacar,
ainda, a nova realidade do sistema elétrico brasileiro. Para atender às
exigências sociais e ambientais, o País vem implantando usinas hidrelétricas
sem reservatórios, que estão, em sua maioria, afastadas milhares de quilômetros
dos centros urbanos, bem como implantando usinas menores, eólicas, de biomassa
e pequenas centrais hidroelétricas ( PCHs). Esse novo desenho mudará a forma de
operar o sistema elétrico, trazendo mais complexidade.
No setor elétrico uma decisão que a princípio parece
ser mais vantajosa para o consumidor pode, no final das contas, trazer mais
prejuízos. Esse é o grande temor dos profissionais do setor elétrico que foram
alijados das discussões das medidas agora implantadas.
Simplificações são recursos necessários no tratamento
de sistemas extremamente complexos. Sem elas, a própria compreensão dos eventos
que ocorrem nesses sistemas se torna muito difícil. Contudo, deve-se tomar
muito cuidado nessas simplificações para não deixar de fora dos modelos justamente
aqueles elementos que definem a própria natureza do sistema. Sem esse cuidado,
as interpretações derivadas do processo de simplificação não têm aderência com
a realidade e, portanto, são de pouca serventia.
Fixar a remuneração dos agentes de geração e
transmissão pelos custos médios abstrai uma característica essencial do Sistema
Interligado Nacional que é a sua grande heterogeneidade de condições de
operação e custos. Essa abstração gera uma intervenção regulatória equivocada,
cujas consequências negativas são diretamente proporcionais ao seu afastamento
da realidade concreta da operação das empresas.
Portanto, há um grave erro conceitual na consideração
dos custos pelos serviços de operação e manutenção (O&M) na nova regulação
do setor elétrico brasileiro.
Esse erro terá consequências. A longa experiência
histórica do setor elétrico brasileiro indica que elas não serão boas nem para
o setor, nem para o país.
[*] Engenheiro
eletricista, ex-Diretor de Operação do Sistema de Furnas e atual Diretor do
Instituto Ilumina.
[1] A Lei trata da prorrogação das concessões de
geração e transmissão e distribuição de energia elétrica.
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