Quais as consequências e custos inerentes a essa opção?
Quais serão os problemas futuros que a decisão de abrir mão de reservatórios
com efetiva capacidade de regularização de vazões poderá criar?
Primeiramente, deve-se considerar que a energia
“gerada” por uma hidrelétrica resulta da transformação da “força” do movimento
da água. Transforma-se, assim, em energia elétrica, a energia cinética
decorrente da ação combinada da vazão de um rio e dos desníveis de relevo que
ele atravessa. Desse modo, não restam dúvidas de que, para o processo, guardar
água significa guardar energia.
Os sistemas de captação e adução levam a água até a
casa de força, estrutura na qual são instaladas as turbinas. As turbinas são
equipamentos cujo movimento giratório provocado pelo fluxo d’água faz girar o
rotor do gerador, fazendo com que o deslocamento do campo magnético produza
energia elétrica. O vertedouro, por sua vez, permite a saída do excesso de água
do reservatório, quando o nível ultrapassa determinados limites. Outros
aspectos e outros equipamentos são, também, importantes, mas, em qualquer caso,
estaremos diante de uma busca por queda e vazão – a primeira, fixa, e a
segunda, variável.
Nesse processo de transformação, a geração de energia
elétrica é limitada pelo produto entre vazão e altura de queda, pois a energia
obtida é diretamente proporcional ao resultado dessa conta. A barragem
interrompe o curso d’água e forma o reservatório, regulando a vazão. Em uma
usina com reservatório, essa variável pode ser controlada pelos administradores
da planta. Em uma usina a fio d’água, fica-se refém dos humores da natureza,
ainda que com menor dependência que as eólicas. Hidrelétricas com reservatórios
próprios são capazes de viabilizar a regularização das vazões. Devido à sua
capacidade de armazenamento (em períodos úmidos) e deplecionamento (em períodos
secos), elas atenuam a variabilidade das afluências naturais.
Deve-se considerar, também, que esse mesmo efeito pode
ser obtido com a construção de usinas “rio acima” – ou “a montante”, conforme o
jargão técnico. Hidrelétricas instaladas em um mesmo curso hídrico podem atuar
de forma integrada. Usinas localizadas “rio acima” – a montante, no jargão
técnico – podem usar seus reservatórios para regular o fluxo de água utilizado
pelas usinas localizadas “rio abaixo” – a jusante.
A usina binacional Itaipu, por exemplo, por ser a
última rio abaixo – a jusante, no jargão técnico – da Bacia do Rio Paraná, é
considerada como a fio d’água. Ocorre que se a gigantesca hidrelétrica pode
utilizar toda a água que chega ao reservatório, mantendo apenas uma reserva
mínima para garantir a operacionalidade, tal diferencial se deve, direta ou
indiretamente, à existência de dezenas de barragens a montante.
O conjunto formado pelos potenciais hidráulicos da
margem direita do rio Amazonas é considerado como uma rara e poderosa
combinação de queda e vazão nos estudos de inventário hidrológicos de bacias
brasileiras. A Volta Grande do Xingu, por exemplo, onde está sendo construída a
hidrelétrica Belo Monte, apresenta uma queda de cerca de 90 metros entre dois
pontos muito próximos de um rio cuja enorme vazão resulta de um percurso de
milhares de quilômetros, iniciado no Planalto Central.
Em geral, usinas a fio d’água têm baixos “fatores de
capacidade”. O fator de capacidade é uma grandeza adimensional obtida pela
divisão da energia efetivamente gerada ao longo do ano – em geral, medida em
MWh/ano – pela energia máxima que poderia ser gerada no sistema.[1] Trata-se,
portanto, de uma medida da limitação da usina no que diz respeito à sua
capacidade de gerar energia.
Na Europa, esse fator situa-se entre 20% e 35%, em
média, sendo um pouco maior na China e chegando a valores próximos a 45% nos
EUA[2]. Em média, as hidrelétricas brasileiras têm fator de capacidade estimado
em valores situados entre 50% e 55%. A regularização de vazões por meio do uso
de reservatórios faz com que essa média suba significativamente, embora essa
não seja, em muitos casos, a única responsável por isso. No rio São Francisco,
por exemplo, esse número para Sobradinho é 51%, e para Xingó, mais a jusante, é
68%. No rio Madeira, a usina Jirau tem fator de capacidade próximo de 58%, e o
número para a usina Santo Antônio é de 68%. Não por acaso, a vantagem relativa
de Santo Antonio guarda forte correspondência com o fato de ser um projeto
situado a jusante de Jirau. Pelas razões já apontadas, é possível compreender o
magnífico número de 83% para Itaipu.
No caso de Belo Monte a potência total instalada é de
11.233,1 MW e a geração anual média é de 4.571 MW, o que resulta em um fator de
capacidade pouco maior do que 40%. Esse tem sido um dos pontos mais criticados
pelos opositores ao empreendimento, que afirmam que a usina irá “gerar pouca
energia”. Mas os argumentos utilizados, em geral, não levam em consideração
dois pontos essenciais: os valores médios do fator de capacidade das
hidrelétricas brasileiras e a principal razão pela qual o projeto de Belo Monte
teve esse valor diminuído.
Ainda que se considerasse Belo Monte como um projeto
com fator de capacidade muito distante das médias das usinas brasileiras,
deve-se levar em conta que o mesmo não ocorreria ao se compará-lo com aqueles
situados na Amazônia e com as de outros países. Em Tucuruí, por exemplo, no rio
Tocantins – diga-se de passagem, dispondo da regularização de usinas a montante
–, esse valor é de aproximadamente 49%.
O reservatório projetado para Belo Monte foi diminuído,
bem como inviabilizada a capacidade de regularização das vazões afluentes às
suas barragens, em razão de argumentos de natureza ambiental. Além disso, houve a decisão de se elaborar um
hidrograma denominado “de consenso”, com o objetivo de garantir que, a jusante
do barramento, fossem asseguradas boas condições de pesca e de navegação às
comunidades indígenas, entre outros aspectos.
Evidentemente, regularizar ou não a vazão de um curso
d’água é uma decisão que, necessariamente, deve incorporar a dimensão ambiental
– numa escolha entre alternativas que devem ficar absolutamente claras para a
sociedade. Entretanto, essa decisão vem sendo tomada sem o necessário
amadurecimento, sem uma discussão ampliada, baseada em estudos objetivos dos
benefícios e custos associados a tal escolha, com um exagerado receio de
desagradar a grupos de pressão específicos e visando a uma boa imagem do
governo na mídia.
Aliás, justamente nos diversos meios de comunicação é
possível encontrar os maiores disparates sobre o assunto. Nas informações
divulgadas nesses meios há boas doses de lirismo, relacionado com a eventual
substituição dos projetos de hidrelétricas, nomeadamente aqueles que preveem
grandes reservatórios, em benefício de outras formas de transformação de energia
– como as eólicas, por exemplo.
Informações de baixa qualidade técnica, inclusive
relacionadas à possibilidade de substituição de energia hidrelétrica por
eólica, encontram eco entre os mais diversos operadores do direito e resulta em
uma posição defensiva dos técnicos governamentais, tanto da área de energia
quanto da área ambiental. Alguns dos argumentos mais utilizados nessa
judicialização calcada na subjetividade são fundamentados no chamado “Princípio
da Precaução”, que pode ser definido como de natureza filosófica, política,
doutrinária, religiosa ou ideológica – mas, jamais como de natureza científica.
O Princípio da Precaução é, essencialmente, um preceito
que, se aplicado ao pé da letra, inviabilizaria o desenvolvimento, justificando
a inação diante da ameaça de danos sérios ao ambiente, mesmo sem que existam
provas científicas que estabeleçam um nexo causal entre uma atividade e os seus
efeitos. Impõem-se, nesses casos, todas as medidas necessárias para impedir tal
ocorrência.
Pode-se dizer que há em tal raciocínio uma quase
paródia do pensamento de Leibniz, pois em vez de se supor que nada acontece sem
que haja uma causa ou razão determinante, a mera suposição causal (de um dano
ambiental, nesse caso) determina que nada deva acontecer.
Como acreditar que seja possível definir ameaça de
danos sérios ao ambiente sem uma abordagem científica? Como definir ameaça,
danos e sérios sem recorrer à ciência? Lamentavelmente, muitos atores políticos
e operadores do direito crêem ser capazes de fazê-lo. No mundo real, a adoção
rigorosa do princípio da precaução implicaria fechar todos os laboratórios
científicos mundo afora. No Brasil, atualmente, sua aplicação faz com que um
empreendedor tenha que provar que as intervenções previstas não trarão impactos,
mitigáveis ou não, ao meio considerado, o que é virtualmente impossível.
A militância radical, sustentada no Princípio da
Precaução, está se utilizando de um raciocínio de mão única. A usina a fio
d’água desperdiça a chance de se guardar energia da forma mais barata e da
única forma que permite múltiplas utilizações da água armazenada como a criação
de peixes, o turismo e a contenção de cheias, por exemplo.
Em um pensamento predominantemente ideológico não há
espaço para que sejam debatidas questões fundamentais acerca da opção única por
usinas “a fio d’água” ou com reservatórios subdimensionados. Em primeiro lugar,
deve-se considerar que o desperdício de capacidade produtiva de energia a
montante da usina a fio d´água é praticamente irreversível. Em segundo lugar, a
decisão por um caminho praticamente sem volta foi tomada sem o devido e
necessário debate técnico e político acerca de um tema que afetará as próximas
gerações. Não seria este o caso de se utilizar o princípio da precaução,
evitando-se tomar uma decisão irreversível e de provável impacto ambiental
negativo, visto que será necessário, no futuro, recorrer a fontes mais
poluentes de energia para substituir a capacidade hidrelétrica desperdiçada?
No Brasil, a capacidade de armazenamento de energia em
reservatórios é intensamente beneficiada pela diversidade de ciclos
pluviométricos das bacias brasileiras, um diferencial notável em relação a
outros países. A otimização desses reservatórios passa pelas linhas de
transmissão, que, na prática, funcionam como vasos comunicantes, transportando,
em vez de água, energia de uma bacia hidrográfica que esteja em um momento de
abundância de água, para outra, onde haja necessidade de se economizar água
escassa. Desse modo, Belo Monte não pode ser entendida como uma usina isolada
e, sim, como virtuosa e hidricamente intercomunicada – por ser interligada
eletricamente – com o resto do País. Uma vez que o rio Xingu tem suas cheias
quase dois meses depois das cheias dos rios das regiões Sudeste, Centro-Oeste e
Nordeste, a possibilidade de armazenamento em Belo Monte diminuirá fortemente
os riscos de carência de energia – no jargão técnico, o risco de déficit.
Os estudos de um projeto hidrelétrico incluem a análise
do comportamento das estruturas, simulando a passagem de uma vazão superior a
cheia decamilenar, ou seja, uma cheia de tempo de retorno de 10.000 anos. É
tranquilizador saber que a margem de segurança de uma barragem é tão
significativa. Todavia, esse cálculo não guarda qualquer relação com a
segurança de vazões suficientes para fazer frente à influência da economia
sobre a demanda por energia. Nesse caso, utilizam-se os cenários econômicos
para estimar a demanda.
Como a matriz de geração elétrica no Brasil há forte
predominância hidrotérmica, os cenários começam a sinalizar a crescente
necessidade de uso de energia de fonte térmica, mais cara e mais poluidora que
a hidrelétrica.
E o pior: “ovos de Colombo”, como a repotenciação e a
modernização de hidrelétricas, ainda que totalmente defensáveis, não são
processos capazes de garantir o acréscimo anual de 3.300 MW médios de energia
que o Ministério de Minas e Energia considera necessário para fazer face às
projeções de crescimento econômico para o Brasil. Difundir informações de que a
implantação desses processos evitaria, por exemplo, a construção das usinas do
rio Madeira não tem qualquer cabimento. O mesmo se pode dizer quanto à
possibilidade de eólicas serem capazes de evitar a construção de novas
hidrelétricas.
Concordemos, então: a energia eólica é uma beleza, o
Brasil deve investir cada vez mais nessa opção, há quem ache lindos os
cata-ventos e os zingamochos – embora haja dúvidas quanto à reação da população
de cidades que tenham que conviver próximas aos geradores, enfrentando a
poluição visual e a descaracterização urbanística. Entretanto, essa não é uma
opção para a base da matriz elétrica de qualquer país. Eólicas não são feitas
para a geração de base, pois exigem complementação por meio de outras fontes,
como hidrelétricas e termelétricas. Com fator de capacidade menor do que a
média das hidrelétricas brasileiras, as usinas eólicas dependem fortemente dos
ventos, pois essa opção tecnológica não permite armazenar a energia produzida.
O crescimento do mercado consumidor de energia
combinado com a implantação de usinas sem reservatórios diminui a
confiabilidade do sistema, veda o aproveitamento múltiplo dos lagos das
hidrelétricas e obriga o Operador Nacional do Sistema (ONS) a fazer um
gerenciamento ano a ano dos estoques de água nas usinas. Como se sabe, sistemas
elétricos imunes a defeitos ou a desligamentos imprevistos são modelos
teóricos. Os 100% de confiabilidade no sistema elétrico ou “risco zero” de
falhas implicaria elevar os custos, que tenderiam ao infinito. E o consumidor
teria que pagar por isso, o que implicaria tarifas proibitivas. Assim, no mundo
todo, algum risco de falha no sistema é aceito. Mas a redução no nível de
confiabilidade do sistema interligado não é desprezível quando se reduz a
capacidade de armazenamento de um sistema predominantemente hidrotérmico como o
brasileiro.
Quem deveria decidir se a opção pela construção de
usinas a fio d’água é a melhor alternativa? Trata-se de um risco para o
sistema, um erro inclusive do ponto de vista socioambiental e uma opção
praticamente irreversível. Logo, constitui matéria a ser objeto de discussão
por ampla representação da sociedade, e não apenas por ativistas ambientais,
sociais, ideológicos ou do direito.
Parece que alguém se esqueceu do art. 20, inciso VIII,
da Constituição Federal, segundo o qual os potenciais hídricos são bens da
União e não de meia dúzia de agentes públicos assustados com as ONGs, com a
mídia e com os “achistas” de plantão. Se essa é uma discussão a ser feita pela
sociedade e como seria inviável – embora defensável e desejável – a realização
de um plebiscito acerca do tema, a democracia representativa tem a única
resposta legítima para esse desafio: o Congresso Nacional.
Fonte: Brasil: economia e governo
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